Durante muitos anos, a Fábrica de Salsichas era um orgulho da localidade onde se encontrava instalada. Muitas dezenas de operários e operárias lá trabalharam na produção de toneladas de salsichas, embaladas e vendidas por todo o país. No entanto, um problema inesperado com o fornecimento de tripas começou a criar dificuldades na produção. O incumprimento dos prazos das entregas trouxe prejuízos à fábrica e aumentou as tensões entre chefias e trabalhadores. A situação, já frágil, agravou-se quando um misterioso acidente provocou a morte a um dos funcionários, de maneira macabra: ele teria sido, de algum modo, transformado em salsicha durante o processo de produção.

Alguns anos após o encerramento da Fábrica de Salsichas, o explorador urbano Alexandrino Devoluto decide visitar as instalações desativadas para fazer alguns registos fotográficos e videográficos. As instalações tinham uma dimensão considerável e encontravam-se particionadas por muitas secções, pois em cada uma delas decorria o processo de transformação da carne em salsicha, nas suas diferentes fases. Muitas dessas áreas de produção encontravam-se praticamente vazias mas numa zona de armazenamento, Alexandrino Devoluto encontrou muitas latas de salsichas e ficou surpreendido e curioso ao observar um fluído seco e vermelho espalhado pelo chão. Reteve-se por lá algum tempo para fotografar aquilo até ser surpreendido por um homem que se aproximou dele. O homem, aparentemente envelhecido e com cerca de 70 anos de idade, começa a falar ao mesmo tempo que se vai aproximando:

- Sabe o que é isso que está a fotografar?

O explorador urbano direciona novamente o seu olhar para o fluído e depois de uns breves segundos abana a cabeça para responde-lhe que não sabe.

De imediato o homem retoma a palavra:

- Como já se terá apercebido, este local era uma fábrica de salsichas. Trabalhei aqui durante 30 anos até ao encerramento da fábrica. Se quiser acompanhe-me enquanto fotografa para lhe contar a história e ficar a perceber o que é esse vermelho espalhado pelo chão.

Meio receoso, Alexandrino aceitou acompanhar o homem que o levou para a zona dos escritórios, onde se encontravam altas prateleiras com documentos e pastas de arquivo empoeirados. Algumas mostram faturas, guias, relatórios e anotações. O homem diz:

- Pois bem! Aqui eram os escritórios da fábrica. Você não terá certamente tempo para vasculhar todos os papeis e descobrir por si algumas verdades desconhecidas que estarão escondidas nalguns destes documentos. Mas eu vou poupá-lo a esse trabalho…

Nos tempos áureos da fábrica era enorme a procura de salsichas e as máquinas operavam quase ininterruptamente. Contudo, um problema crescente com o abastecimento de tripas, que eram essenciais para o enchimento, começou a colocar a produção em risco. A fábrica dependia de um fornecedor específico, que começou a falhar nos prazos e a aumentar os preços, deixando o chefe da produção em apuros. O clima entre os trabalhadores tornou-se tenso, com o surgimento de boatos sobre possíveis despedimentos e até sobre uma venda forçada da fábrica. O diretor-geral, foi pressionado a encontrar soluções rápidas, mas a escassez de matéria-prima piorou e os lucros da fábrica começaram a cair. As coisas não estavam bem mas pioraram quando, numa noite de fevereiro, eu e mais alguns colegas trabalhávamos para cumprir um pedido de emergência. No meio da madrugada, ouviram-se gritos pela fábrica... Um colega meu, Ernesto, que operava na secção de enchimento, desapareceu misteriosamente. Muito pouco tempo depois, um supervisor encontra rastos de sangue perto de uma das máquinas. Ninguém entende exatamente o que aconteceu, mas alguns trabalhadores afirmam que Ernesto teria sido, de alguma forma, sugado para dentro do equipamento, resultando num terrível "último lote". Aquelas latas e o fluído vermelho que você fotografava lá em baixo fazem parte, precisamente desse último lote…

Alexandrino Devoluto estava sem palavras, incrédulo e estupefacto com a descrição do homem que continuou:

- Você entenderá agora os motivos da falência desta fábrica. As chefias pediram silêncio sobre o sucedido, e o caso foi encerrado como um acidente trágico, mas as suspeitas entre os operários cresceram, e o ambiente tornou-se insustentável. Trouxe-o até aqui aos escritórios porque é neste lugar que existem ou existiram documentos comprometedores. Alguns mostram o histórico de pedidos de tripas, revelando que as tripas foram, de fato, trocadas por outro material durante um curto período de tempo. Assim como há anotações misteriosas sobre lotes desviados e referências a encontros secretos entre o diretor geral e um fornecedor obscuro. Outros documentos apontam para pagamentos incomuns e inconsistentes, que parecem sugerir subornos e um possível encobrimento. Acredito que o caso do Ernesto foi abafado para evitar um escândalo e, após o seu desaparecimento, a produção parou repentinamente, e muitos dos produtos finais nunca foram distribuídos. Ficaram lá em baixo…

Nota: qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.